No início dos anos 30, quando alguns portugueses sonhavam com uma indústria cinematográfica própria, o modelo hollywoodiano dos géneros cinematográficos foi muito influente. Nessa primeira década de institucionalização da ditadura do Estado Novo tentaram-se vários filmes de género: comédia à portuguesa, adaptações histórico-literárias, filme épico e até o western.
A primeira tentativa de fazer um western à portuguesa foi precisamente Gado Bravo (1934), um projecto que assegurou à partida um importante núcleo de colaboradores alemães, entre os quais se encontravam os experientes e reputados técnicos Max Nosseck (1902-1972) e Heinrich Gärtner (1895-1962; mais tarde conhecido em Portugal e Espanha por Enrique Guerner), o compositor Hans May (1886-1958) e os populares actores Olly Gebauer (1908-1937) e Siegfried Arno (1895-1975). Em fuga da Alemanha nazi, como muitos outros compatriotas, estes alemães foram atraídos para Lisboa por Arthur Duarte (1895-1982), que é actor no filme e que trabalhou como actor em Paris (1924-27) e nos estúdios da UFA na Alemanha (1927-29), depois trabalhando também como assistente de realização.
Apesar da presença significativa de estrangeiros e da clara tentativa de internacionalização deste projecto, o produtor Hamilcar da Costa esclarecia que este filme era “retinta e insofismavelmente” português, por ser “concebido por uma mentalidade portuguesa, filmado no mesmo país, focando pedaços da nossa vida, levada a cabo, exclusivamente, por capitais portugueses, consegue ter e dar uma unidade indispensável a um espectador para reconhecer nele uma obra nacional” (Hamilcar da Costa cit. In Ribeiro, 1983: 326-328).
Resumidamente, o enredo de Gado Bravo conta a história de um homem simples e corajoso que se vê envolvido numa trama amorosa entre duas mulheres, tendo como cenário a lezíria ribatejana e toda a sua tradição folclórica e tauromáquica dos campinos.
Não se trata propriamente de uma história “retinta e insofismavelmente” portuguesa, como defendia o produtor, mas este confronto entre diferentes concepções da mulher ideal seria muito repetido no cinema português dos anos 30 e 40: de um lado, a doce, virtuosa e pura donzela ribatejana (Branca, interpretada por Nita Brandão), símbolo das virtudes da mulher portuguesa; e do outro, a perversa e vivida mulher estrangeira (Nina, interpretada pela glaumourosa Olly Gebauer), representada aqui pela mulher de cabaret. Depois de muitas hesitações e indecisões, a doce e pura portuguesa leva a melhor, fica com o herói e vivem felizes para sempre.
Apesar de ser uma produção privada, sem qualquer apoio financeiro público, os valores morais e sociais promovidos pelo filme reflectiam e difundiam a ideologia contextual do Estado Novo: Deus, Pátria, Autoridade, Família e Trabalho, definida no célebre discurso que António Oliveira Salazar proferiria em Braga, em 1936.
Ainda que os valores Deus, Autoridade, Família e Trabalho surgissem como naturais no decorrer e no desenlace do enredo ficcional, a questão da Pátria revelou-se mais complexa, uma vez que o Estado Novo pretendia valorizar e consagrar a arte nacional e os códigos narrativos e visuais do western hollywoodiano punham isso em causa. Ironicamente, o crítico de cinema Roberto Nobre definia o filme como “uma receita de cozinha. Mete-se uma vamp, uma ingénua, e um galã. Um cómico para amenizar, dez gramas de canção regional e outras dez de fado. Para o clou final, uma espécie de ‘ornamentação de açúcar’, a tourada vistosa e o casamento regional” (Nobre, 1934).
Num momento em que se pretendia valorizar um modo de fazer arte que fosse eminentemente portuguesa – no cinema, na literatura, na pintura, na arquitectura, etc. – e que pretendia encontrar sempre a portugalidade de todos os aspectos, António Lopes Ribeiro achou que poderia adaptar os códigos cinematográficos do western à realidade da região ribatejana, conhecida pela sua tradição tauromáquica e campina, introduzindo elementos dramáticos que suportassem a narrativa. O próprio António Lopes Ribeiro pretendeu fazer um filme “um filme de acção, em que cada cena é um ‘documento’ autêntico da nossa terra, de valor étnico incontestável. Somente, como o cinema não se sujeita a rígidas fórmulas didácticas, pusemos de parte todos os preconceitos de fidelidade corográfica. Fomos buscar para uma mesma cena motivos que distam na realidade muitas léguas. A aldeia ribatejana onde decorre a maior parte da acção não existe. É uma ‘criação cinematográfica’ feita dos mais pitorescos fragmentos de onze vilas e aldeias ribatejanas” (António Lopes Ribeiro cit. In Ribeiro, 1983: 328).
A temática dos campinos e dos toiros não era inédita no cinema português, nomeadamente na tradição marialva em A Severa (1931), mas o ritmo westerniano imposto por Lopes Ribeiro iria reformular este género português, que, nestes moldes, iria ressurgir nos finais da década de 40, com Um Homem do Ribatejo (1946, Henrique Campos), Ribatejo (1949, Henrique Campos) e Sol e Toiros (1949, José Buchs).
Os filmes deste género veiculam uma visão inter-classista da sociedade, mostrando uma nítida diferenciação de comportamentos na hierarquia social. Na hierarquia do trabalho valorizam nos empregados um claro respeito e obediência aos superiores, e nestes, um nobre sentimento de paternalismo em relação aos seus subordinados. A figura do proprietário e criador de toiros (como Manuel Garrido) é muito importante e respeitada na comunidade. A sua grande casa senhorial é um símbolo da tradição marialva, representando bem o poder e a influência social que ocupa no meio rural ribatejano. A figura do maioral, “chefe” dos empregados, detém um certo prestígio e influência que resulta da sua responsabilidade e do voto de confiança expresso pelo proprietário. O paternalismo surge como uma espécie de legitimação da hierarquia de poderes e como apologia da submissão, numa clara analogia com o panorama político e social do Estado Novo. A autoridade é aceite como “um facto e uma necessidade, um direito e um dever, um alto dom da Providência, indispensável à defesa dos interesses colectivos e ao ajustamento dos meios aos fins do agregado social; [...] à autoridade vêm associados os valores de ordem, disciplina, paz, tranquilidade, direito, confiança, sacrifício, bem servir, obediência, hierarquia, diferenciação social e justiça, cuja frequência no discurso salazarista é, sem qualquer dúvida, indício indesmentível do lugar central que aquela ocupa neste sistema axiológico” (Reis, 1990: 336-337).
Destaque-se ainda a extrema importância da tauromaquia no Ribatejo, nomeadamente a popular tourada. O espectáculo tauromáquico representa uma das mais antigas manifestações lúdicas e culturais dessa região e é um símbolo de toda uma tradição marialva muito valorizada nessa época. Essa tradição tauromáquica foi habilmente utilizada para tentar adaptar o western à paisagem ribatejana. No entanto, Roberto Nobre alerta para essa relação forjada entre o western e o western ribatejano: “talvez pela similaridade de tratarem igualmente de toiros, haver vida ao ar livre, andarem a cavalo, haver sol e largas paisagens, há muito quem aponte nos nossos campinos e no Ribatejo uma solução prática e simples para os nossos filmes, seguindo esse modelo desembaraçado e barato. Esquecem que esses westerns são intraduzíveis em português... Também não têm conseguido ser imitados em qualquer outro ponto do mundo. [...] [Há] uma fundamental diferença que vai do pesado albardão, acolchoado e encilhado no qual se escancha, pesadamente, o nosso campino, às finas e leves selas de coiro repoussé sobre as quais galopa o cow-boy. [...] Já repararam acaso, na diferença entre o nosso pacato regedor, timidamente amparado a duas forças rurais que são o padre-cura e a ronda da G.N.R. e o decidido xerife que, desde que ostente a estrela de cinco pontas, logo se apoia, resolutamente, na rapidez e pontaria com que despeja os seus dois revólveres de oito balas? [...] É essencial esclarecer este equívoco fundamental: o western não é, em cinema, o local, mas um estilo, uma mentalidade, uma intenção de acção pela acção. [...] Nenhum dos nossos realizadores pretendeu até hoje a ‘westernização’. O tema do Gado Bravo deve-se ao cenarista alemão Erich Phillipi, cuja imaginação não foi além de conceber o choque sentimental que uma vamp de fancaria podia produzir num dos rapazes do Ribatejo. [...] Outro caso [desse equívoco] é o de Um Homem do Ribatejo. Faltou-lhe quem soubesse estruturar um argumento com verdade, com densidade psicológica nas personagens. [...] Far-West ou o nosso próximo Ribatejo não passam, pois, de ‘clima’ para fundo, para dar carácter aos usos e costumes – mas a humanização, a estrutura lógica, as qualidades de dramatização (além da estética e da técnica, é claro) é que tornam as películas obras de arte aceitáveis”. (Nobre, 1964: 95-101)
Referências bibliográficas
NOBRE, Roberto (1934). «Gado Bravo», in O Diabo, 19 de Agosto.
NOBRE, Roberto (1964). Singularidades do Cinema Português. Lisboa: Portugália Ed.
RIBEIRO, Manuel Félix (1983). Filmes, Figuras e Factos da História do Cinema Português 1896-1949. Lisboa: Cinemateca Portuguesa.
REIS, António (1990). «Os Valores Salazaristas», in Portugal Contemporâneo, dir. António Reis. Lisboa: Publicações Alfa, pp. 333-338.
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