O nascimento de um festival de cinema é sempre (e cada vez mais) uma esplêndida notícia. Se não fossem os festivais, os cinéfilos não teriam a oportunidade de ver em óptimas condições as centenas de valiosos filmes – seja qual for a sua duração – que todos os anos se produzem no mundo e que ficam à margem dos circuitos comerciais de distribuição. As cinematecas, os cineclubes e os festivais que já existem – e em Portugal temos exemplos excelentes – cobrem uma parte das necessidades, mas são tantos e tantos os filmes que merecem ser vistos, os que nos revelam outras formas ideológicas e estéticas, que é preciso, hoje mais do que nunca, criar espaços para a sua exibição normalizada. É motivo de celebração o novo encontro que o Porto/Post/Doc nos marca para o mês de Dezembro, de 4 a 13, assim como é motivo de celebração a programação estável que desenvolve ao longo de todo o ano sob o lema Há Filmes na Baixa.
Um festival é, acima de tudo, um ponto de encontro. Uma festa que põe em contacto cineastas e espectadores. É também um centro de conhecimento, de difusão e intercâmbio de ideias. Um festival deve formar espectadores, deve-nos servir de guia para descobrirmos outros caminhos. E o pretexto que justifica tudo isto – o encontro, o convívio, o conhecimento – são os filmes. Os programadores do Porto/Post/Doc apostam em transcender os limites tradicionais da não-ficção, e a sua competição internacional é uma genuína declaração de intenções: uma selecção diversa e fértil com uma magnífica presença portuguesa e coroada pela participação do mais recente filme do filipino Lav Diaz, que é já uma figura de referência.
O Porto/Post/Doc não podia nascer em melhor companhia. Outorga carta branca ao CPH:DOX de Copenhaga e ao FIDMarseille de Jean-Pierre Rehm, dois dos principais festivais europeus que são, além disso, essenciais para perceber as transformações da não-ficção contemporânea. Uma terceira carta branca fica a cargo de Dennis Lim, que é agora director de programação da Film Society do Lincoln Center depois de ser colunista e crítico imprescindível no Village Voice e no The New York Times. E pela mão de Lois Patiño chega o “novo cinema galego” com quatro títulos que abriram portas e janelas à criação fílmica a norte do Minho e colocaram o cinema da Galiza nas montras mais importantes do planeta, como Cannes ou Locarno.
O Porto ocupa um lugar central na história do cinema português, e ainda que haja muitos nomes que justificam esta afirmação há um que é por si suficiente: Manoel de Oliveira. Quase a fazer 106 anos, poucos cineastas são tão jovens e livres como ele. O Porto/Post/Doc presta-lhe uma merecida homenagem com a estreia da sua última curta-metragem, O Velho do Restelo, mais uma demonstração de sabedoria, a enésima lição de um mestre que recorre a grandes figuras históricas da cultura ibérica para questionar o nosso tempo, regressando ao passado para perceber as feridas do presente, como também faz, de modo bem distinto, Cavalo Dinheiro, de Pedro Costa. E ambos são olhares imprescindíveis, incómodos e extremamente emocionantes.
Para além das convenções televisas, o melhor cinema documental actual olha com ânimo renovador e lúcido para a música e os músicos. Fala também com espírito crítico do mundo em que vivemos, para questionar os discursos dominantes. Explora territórios que vão para lá do tópico vulgar, como faz Soon-Mi Yoo com a demonizada Coreia do Norte em Songs from the North. Repensa Portugal com Raquel Freire e Valérie Mitteaux ou Pedro Neves. Pergunta onde está o real e estuda a visão que o cinema dá das coisas, como no monumental Los Angeles plays itself de Thom Andersen, fascinante e lúdico retrato de uma cidade tal como foi mostrada nos filmes. Diverte-se com os discursos apocalípticos e de fim da película num cocktail extravagante preparado por Raya Martin e Mark Peranson, La última película. E no mesmo espírito eclético mistura formatos e dinamita qualquer tentativa de classificação numa curta inédita de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, de regresso a Macau com Iec Long.
Sobram as razões para nos encontrarmos em Dezembro no Porto/Post/Doc. Que seja o primeiro de muitos.
Martin Pawley. Texto de presentación para o dossier de imprensa da primeira edición do Porto/Post/Doc.
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