Hai meses saudamos con entusiasmo a publicación no sitio web do xornal Público do filme de 24 horas Um Dia Normal, que neste blog consideramos unha das propostas audiovisuais máis estimulantes de 2015. Conversamos hoxe co coordinador do proxecto, Sérgio B. Gomes, sobre a xénese e posta en marcha do mesmo.
No marco do obxectivo xeral de celebrar o 25º aniversario do xornal, como xorde o proxecto?
O
planeamento da edição de aniversário do jornal foi lento e complicado.
Era uma edição ambiciosa porque marcava, em primeiro lugar, um quarto de
século de existência de um jornal em papel. Durante as eufóricas e
confusas reuniões de
brainstorming para esse momento, dia 5 de Março,
houve várias sugestões para trabalhos online, mas quase sempre em
complemento com os trabalhos que foram sendo pensados para a edição em
papel. No Público Online não gostamos de andar a reboque de nada. Nem
ficar dependentes das contingências de outros suportes. De maneira que,
mal saímos da última reunião comecei a pensar em voz alta ao lado da
directora, Bárbara Reis, e de um dos editores online, Hugo Daniel Sousa.
Estava a pensar na palavra “tempo” e naquilo que poderia ser diferente
(muito diferente) do que estamos habituados a ver online. Percebi que
tinha de ser um trabalho de vídeo, porque o tempo aí não seria meramente
descritivo (ou descrito) como aconteceria com a palavra numa reportagem
de texto. O tempo é a natureza da imagem em movimento, é um factor
determinante e omnipresente – um minuto é um tempo perfeito.
Começamos
a falar em 12 reportagens vídeo, depois em 24, tantas quantas horas tem
um dia. Mas pareceu-nos tudo
deja vú, antiquado, ultrapassado. E
perguntei: e se fizéssemos um vídeo por cada minuto de um dia? Quantos
minutos tem um dia? 1440. Estávamos a um mês da edição. A Bárbara e o
Hugo acharam a ideia uma bocado louca, impossível de pôr em prática por
causa do tempo disponível. Tínhamos um mês para concretizar tudo. Achei
possível e consultei a equipa Multimédia (webdesigners/developers, IT,
vídeo). Não sei se pelo meu entusiasmo ou pela ideia muito ambiciosa, o
certo é que todos disseram que sim, que era possível. Foi assim. E
começámos logo a trabalhar.
Tivestes algún referente para
definir o proxecto, tanto no seu deseño conceptual coma na súa
presentación web final? Nos últimos anos acadaron un gran eco propostas
tan diferentes entre si coma o The Clock de Christian Marclay ou as 24 Hours of Happy de Pharrell Williams...
Uma das iniciativas para
comemorar os 25 anos do Público foi justamente trazer a Lisboa a peça de
The Clock, de Marclay (esteve em exposição no Museu Colecção Berardo),
mas confesso que na altura em que discutimos esta ideia eu nem sabia da
existência desta obra. Conhecia o
24 Hours of Happy, de Pharrell
Williams. Não pensei nele nas primeiras conversas sobre a ideia de
Um
Dia Normal. Mas depois, naturalmente, fomos tentar perceber como tinham
resolvido uma série de questões técnicas que entretanto se levantaram
(peso do vídeo, navegação de umas horas para outras, qualidade da
imagem...). Em termos conceptuais (ou editoriais, para ser mais
rigoroso) não tivémos nenhum referente directo. No área do jornalismo -
considero
Um Dia Normal um trabalho de jornalismo, uma reportagem visual
- não conheço nada semelhante.
Que prazos de tempo se manexaron para o deseño, desenvolvemento e finalización do “filme”?
Tivemos um mês para tudo – pensar, produzir, gravar vídeo e áudio, editar, cortar, montar, desenvolver, testar, implementar.
Como foi a produción e a gravación? Que
pautas se seguiron para a gravación das imaxes?
Tentámos uma produção organizada nos primeiros quinze
dias, mas depois mergulhámos no caos e percebemos que não teríamos tempo
para controlar tudo. E por isso, aceitámos o improviso, a sensibilidade
de cada um e a capacidade de encontrar momentos que encaixassem na
nossa ideia de partida. Tínhamos uma equipa de vídeo de três pessoas
(comigo a coordenar) a trabalhar em permanência na gravação um pouco por
todo o país (cada saída para uma região podia durar no máximo três
dias). À medida que fomos avançando, foram-se juntando outras pessoas
individualmente (no Porto, nos Açores, em Lisboa...). Pedi que os planos
fossem fixos e com som directo, que as cenas tivessem o máximo de
genuidade. Tratava-se de olhar para o que nos rodeia e captar a marca do
quotidiano. Mesmo os brutos deviam ser criteriosos (não filmar uma hora
para escolher um minuto). Não tivemos uma preocupação de
representatividade ou de quotas (de região, de profissões, de
idades...). Aliás, qualquer pretensão deste tipo seria utópica. É
impossível reproduzir visualmente todo o quotidiano, todo um país ou
toda a geografia... Termos interiorizado uma série de impossibilidades
deu-nos força para encontrar as possibilidades.
Entre os
minutos deste “día normal” atopamos formas e actitudes moi diversas. Que
criterios seguistes para “contar Portugal en 24 horas”?
Os
exercícios unificadores num trabalho com esta magnitude e com o tempo
que tivemos eram difíceis de concretizar. Tentámos alguns, mas não foram
postos em prática. O que tentámos foi trazer notas visuais de
reportagem, que podiam não ser necessariamente imagens chocantes,
impactantes, noticiosas ou extraodinárias (o objectivo de partida era
contrariar um pouco isto). Tentámos, acima de tudo, olhar para o que nos
rodeia com o objectivo de retirar daí alguma marca de quotidiano de uma
sociedade e de um país que se chama Portugal. A maior parte das pessoas
que trabalharam ou contribuíram para
Um Dia Normal eram jornalistas,
mas houve pessoas com outras formações ou actividades (realizadores de
cinema, documentaristas, webdesigners, infografistas, artistas...). Este
facto fez com que as abordagens não fossem todas puramente
jornalísticas ou mesmo, em alguns casos, puramente documentais. Temos,
inclusive, imagens dos arquivos de alguns dos autores porque pensamos
que essas imagens, o que guardamos, são parte importante da cultura
visual em que estamos mergulhados.
Planos fixos de 1 minuto...
a proposta entronca co documental-experimental contemporáneo, mesmo co
cinema contemplativo. Houbo algún referente para a definición deses
planos?
O jornalismo tem muito
que aprender com a arte no campo da eficácia da mensagem ou mesmo na
postura criativa. As regras com que se faz jornalismo são
extraordinariamente dogmáticas e são raríssimos os exemplos de quem
tenta abordagens alternativas para chegar à audiência. Como é evidente,
os objectivos do jornalismo não passam exclusivamente por chegar a uma
audiência (seja grande ou pequena), mas se os jornais não forem
maleáveis e criativos, como poderão adaptar-se aos tempos
revolucionários que vivemos com suportes, plataformas e formatos a
mudarem todos os dias? No Público temos uma liberdade também cada vez
mais rara que é a de pensar em voz alta. E uma vontade de experimentar
(novos formatos, novas abordagens, novos suportes, novas maneiras de
contar...).
Um Dia Normal foi uma proposta radical e experimental
(conceptual e editorialmente), que só avançou porque existe uma grande
abertura de quem dirige o jornal em tentar abordagens diferentes da
realidade ou da maneira de contar a realidade.
No campo do vídeo
online há muito por fazer e parece-me que estamos muito presos à cultura
visual e aos modos de produzir vídeo para televisão.
Os planos fixos
pressupõem a ideia de um olhar atento, para dele retirar alguma coisa,
uma nota de realidade, ou a evocação de uma ideia, de um traço. Um
minuto é tempo suficiente (às vezes até demasiado) para, através da
imagem vídeo em ambiente de ecrã online, olharmos atentamente. Esta
estratégia formal pareceu-nos a mais próxima do que poderiam ser notas
de reportagem num caderno (as comparações com a palavra e o papel estão
sempre na nossa cabeça!), que lidam necessariamente com a observação da
realidade e onde cabem a mais pura contemplação (da paisagem, do rosto,
da geometria), a descrição (uma ferramenta essencial do jornalismo), a
curiosidade e até um lado de memória e arquivo.
Conheço algum do
trabalho de
Sharon Lockhart (que aprecio muito), nomeadamente o projecto
Pine Flat, que esteve no Museu do Chiado em Lisboa em 2007, e o vídeo
Lunch Break (2008). Mas não houve nenhuma influência directa ao seu
modo de conceptualizar a realidade.
Diria que a maior influência na
definição de um rumo formal para
Um Dia Normal terá sido o documentário
vídeo na sua forma (e atitude) geralmente crua (despida de artifícios)
de encarar a realidade.
Como foi a edición? Hai motivos,
temas, lugares e personaxes que se repiten. Parece clara a intención de
dotar o proxecto de certa narratividade.
Houve vários tipos de
abordagens na edição. Em muitos casos, quem captava editava o seu
próprio material. Este método resultava bem porque tornava mais rápida a
escolha do “melhor minuto” em cada plano. Apenas uma pessoa impôs como
regra gravar apenas um minuto por plano. Aqui, o único trabalho de
edição era o da escolha do momento e o conteúdo do que gravar entre a
realidade disponível, como se tratasse de uma edição anterior à captura
de imagem e som.
Mas à medida que fomos avançando na junção das peças
do puzzle, percebemos que havia vários planos da mesma cena que
representavam um mínimo de estrutura narrativa e que podiam servir para
pontuar todo o objecto com algo a que se pode chamar de avanço na
história ou de visão de diferentes pontos de vista da mesma
cena/ambiente. A inclusão destes momentos foi um dos aspectos mais
discutidos entre a equipa. Havia quem estivesse contra por ser uma
estratégia mais usada na ficção e havia quem estivesse a favor por ser
uma forma de estimular a permanência no vídeo criando expectativa.
En todo documental hai trampas. Cales son as trampas confesábeis de
Um Dia Normal?
Diria
que as principais “armadilhas” são alguns vídeos autoreferenciais (do
que estava à nossa volta - no trabalho, em casa), que o espectador
dificilmente notará, e alguns vídeos onde existe um lado de encenação
(os que foram feitos por um realizador de cinema). Há ainda planos onde a
passagem do tempo é sublinhada (como se fosse hiper-realizada) através
de planos de relógios, ampulhetas ou contagens decrescentes. Para além
disso, não temos grandes armadilhas. Mas posso confessar também uma
piada, também autoreferencial, que é o vídeo das 05h59, um plano de uma
pesquisa no Google por “Empire Andy Warhol YouTube” que depois mostra
parte do longuíssimo plano-sequência em câmara-lenta (8 horas e 5
minutos) que Warhol fez da torre do Empire State Building. Rimo-nos
muito depois de termos filmado esse plano. Aconteceu numa altura em que
havia na equipa um misto de desespero e profundo cansaço. Serviu para
aliviar alguma tensão.
Um Dia Normal é un mosaico de
microhistorias que compoñen un relato de Portugal a escala “macro”. A
suma de feitos mínimos, anónimos, aparentemente banais, define o
presente dun país. O filme non fala só de Portugal, senón de como se
constrúe a historia (ou “unha historia”), minuto a minuto.
Tenho dúvidas de que algum dia um objecto
vídeográfico e jornalístico-experimental como este sirva de referente
para alguma coisa que esteja relacionada com história, no sentido mais
académico da palavra. A partir de factos (depoimentos/testemunhos) o
jornalismo tende a organizar as ideias ou as notas de uma reportagem
numa linguagem facilmente compreensível e reconhecível.
Um Dia Normal
comete o “pecado” de olhar para o todo de uma maneira desorganizada e
mais ou menos caótica e de o apresentar dessa forma, sem qualquer
hierarquia e ao sabor dos gostos e dos interesses dos seus autores. É
uma estratégia que parece contrariar as regras. E desta maneira a sua
mais-valia fica talvez apenas ligada ao seu valor enquanto documento
visual de um tempo, de 1440 pequenos tempos, que juntos representarão
pouco mais do que “um grão de areia que desliza na história”. É uma
estética da imagem baseada no documentarismo que procura o quotidiano,
os “pequenos-nadas”. Esta abordagem não exclui a plasticidade, não para
revelar ou procurar o belo mas para ajudar descrever o real, ou aquilo a
que Jacques Prévert chamou “a beleza do sinistro”.
Parte da
espectacularidade de Um Dia Normal radica en ser unha obra imposíbel de
atinxir. Mesmo para o espectador que sexa capaz de ver, pouco a pouco,
as 24 horas do filme, a sensación que prevalece é a de “mosaico
mutante”, a cada minuto séguelle outro diferente. Ás veces desexaríamos
ficar máis tempo contemplando unha imaxe, mais é substituída por
outra, a seguinte. É unha maneira de facer explícito que “non podemos
estar en todas partes ao mesmo tempo”. As imaxes “escápannos” e con elas
lugares e xentes: por cada imaxe nova que vemos hai unha imaxe anterior
que deixamos de ver. Fai pensar nos noticiarios dos Lumiere, as
imaxes que descubrían o mundo ante os ollos dos primeiros espectadores
de cinema.
A imagem tornou-se num dos
grandes vícios das sociedades contemporâneas. A sua presença é endémica e
vivemos num tempo em que a sua falta provoca ansiedade, stress,
má-disposição e arrepios na espinha (queremos ver tudo, a todo o
momento). Boa parte dos grandes negócios da internet, para falar apenas
dos últimos dez anos, residem na partilha de imagens e no seu usufruto
omnipresente e instantâneo (Facebook, YouTube, Instagram, Pinterest,
Vine, Snapchat...). Quando decidimos partir para esta aventura, sabíamos
que não podíamos abraçar o mundo. Sabíamos que não podíamos representar
a totalidade do que quer que fosse. A limitação (no seu sentido mais
lato) acabou por tornar-se um dos motores do trabalho. E a limitação do
tempo de cada plano acabou por ser um dos exercícios mais estimulantes
no momento do corte de planos e da montagem das 24 horas. Às vezes, o
exercício era cortar o plano no seu momento mais alto, no seu mais
estimulante ponto de vista (visual ou de conteúdo). Também tivemos
sempre presente essa ideia de que o trabalho só iria ser absorvido
parcialmente, aos bocados, de uma maneira errática ou “batoteira”
(navegando através das setas de avançar ou recuar).
Mas até esse lado
é interessante porque o trabalho se revelou linear, não assentando numa
pirâmide (invertida ou não) de hierarquias definidas por
leads,
punchlines ou outra qualquer estratégia de construção narrativa – e quem
acabou por determinar mais o que mostrar foi o momento do dia a que
cada plano se refere: amanhecer, manhã, meio-dia, tarde, anoitecer,
noite. Isto quer dizer, que qualquer momento pode ser um bom momento
para entrar.
Por outro lado, a enorme quantidade de imagens de
Um Dia
Normal pressuporia sempre um lado descartável e rápido no momento do
seu consumo. A pena pelo que acabou e a expectativa pelo que se segue é
uma das forças deste objecto videográfico que, à sua maneira, acaba por
ser viciante.
Um Dia Normal dá protagonismo ao individuo, a
comunidade, os espazos e persoas que non soen aparecer
nos medios. É unha proposta coral de xeografía humana que choca cun
contexto actual onde todo fica sepultado aos grandes intereses
(económicos, políticos). Cal é a lectura socio-política do filme?
Quisemos fugir a
qualquer panfleto reivindicativo de identidade (nacional ou outra).
Partimos de perguntas (infantis?) como: Se olharmos à nossa volta o que
vemos? Entre o que vemos, o que pode representar o quotidiano, a
passagem do tempo? O que pode representar um dia normal? Que pessoas e
paisagens são representativas desse movimento dos dias?
Quisemos
fugir também aquilo a que se convencionou chamar de “o país real”
(muitas vezes retratado com clichés de país pobre, iletrado,
tacanho...).
Quisemos fugir de uma manifestação marcadamente política
(aceitando, naturalmente, que tudo o que fazemos pode ter leituras
políticas).
Mas, sim, procurámos o indivíduo e o individual, sem a preocupação de lhes dar aura ou espectacularidade .
Mais
uma vez, tenho dúvidas de que se possa retirar deste
Dia Normal algo de
académico ou de historicamente muito relevante. Mas ao olhar agora para
o resultado final, consigo encontrar traços que nos revelam e que nos
projectam enquanto país e enquanto sociedade. São traços singelos, mas
suficientemente perceptíveis para quem ficar atento.
O
proxecto defende e explora a diversidade e a pluralidade de miradas que
se opón á crecente parcialidade, dependencia e instrumentalización
política que padecen os medios de comunicación. É Un Dia Normal, tamén,
unha defensa/reivindicación do bo xornalismo?
Absolutamente!
Entrevista realizada por Xurxo González e Martin Pawley. Obrigadíssimo, Sérgio!