venres, 3 de outubro de 2025

Outra Espanha

As leis do desejo

Em outubro de 1970 chegou às salas espanholas a comedia No desearás al vecino del quinto (Não Desejarás o Delicadinho do Quinto), realizada por Tito Fernández, que vendeu mais de quatro milhões de bilhetes, convertendo-se no segundo maior sucesso da história do cinema do país: em primeiro lugar estava a coprodução Per qualche dollaro in più (Por Mais Alguns Dólares, 1965, Sergio Leone), que tinha vendido mais um milhão de bilhetes. Esta marca não seria superada até o século XXI, mais convém recordar que nos anos setenta (e ainda nos oitenta e noventa) o registo dos números de bilheteira era infinitamente menos rigoroso que na atualidade, de modo que é bastante razoável crer que o número real de espectadores deve estar bem acima do oficial. Esse filme é quase paradigmático do chamado «landismo», subgénero com enredos de qualidade ínfima com as derivas eróticas admitidas pela censura franquista e que tinha como ator mais representativo Alfredo Landa, logo reconhecido pelo seu talento (premiado em Cannes por Los santos inocentes [1984, Mario Camus]) mas naquela altura protótipo do «espanhol médio» de libido desbragada e visão turvada pelas turistas suecas. Em no desearás..., Alfredo Landa encarna um costureiro de maneiras efeminadas numa cidade de província não longe de Madrid; o seu comportamento faz que as mulheres e, sobretudo os maridos delas, tenham plena confiança nele. Já o filme vai avançado descobriremos que é tudo uma farsa: a personagem finge ser homossexual para benefício do seu negócio e, na verdade, é um macho ibérico com ganas de se divertir sempre que vai à grande cidade.

A grande simpatia popular deste filme dá uma ideia clara do estado cultural e social da Espanha da ditadura e da perceção pública da diversidade sexual. O regime de Francisco Franco modificou, em julho de 1954, uma lei aprovada durante a Segunda República, a «Lei dos vagabundos e meliantes» de 1933, que permitia a detenção de proxenetas, mendigos, pessoas inebriadas ou toxicómanos; com a alteração, também os homossexuais entraram na categoria de «indivíduos perigosos», castigados com internamentos «em instituições especiais e, sempre, com absoluta separação dos demais» ou com a proibição de «residir em determinados lugares ou territórios» (...)

Martin Pawley. Fragmento inicial do artigo "Outra Espanha", escrito para o Caderno da Cinemateca dedicado a João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra, editado pola Cinemateca Portuguesa en 2025. O texto completo pode lerse no citado volume (páxinas 81-94).

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